A notícia correu como um riff inconfundível de guitarra atravessando o ar: o Guns N’ Roses tocará em Cuiabá. O palco será a Arena Pantanal, mas os efeitos desse espetáculo já ressoam bem além de suas estruturas metálicas. Mais do que delírio dos fãs e da comoção nostálgica, esse anúncio é um gesto de afirmação simbólica, um movimento estratégico que inscreve a capital mato-grossense no mapa das grandes rotas da economia cultural. É a cultura dizendo: estamos aqui, somos potência, merecemos centralidade.
Com a turnê Because What You Want and What You Get Are Two Completely Different Things oficialmente confirmada, a cidade se prepara para receber não apenas uma banda icônica, mas uma engrenagem complexa que movimenta estruturas econômicas, políticas e sociais. A Arena Pantanal, outrora dedicada quase exclusivamente ao futebol, reconfigura sua vocação. Torna-se palco híbrido, equipamento cultural de grande porte, capaz de abrigar um espetáculo que, sozinho, ativa cadeias produtivas inteiras.
Nos bastidores dessa apresentação, há mais do que guitarras e luzes coreografadas. Há produtores, carregadores, técnicos de som, montadores de palco, equipes de limpeza, vendedores ambulantes, guias turísticos, taxistas, cozinheiros, artesãos. Um show internacional não é apenas um evento; é uma cidade se movendo em harmonia temporária. E quando se move, gera renda, aquece setores, alimenta esperanças.
O Brasil vive, silenciosamente, uma inflexão: a economia criativa, que muitos ainda tratam como acessória, já representa cerca de 3,6% do PIB nacional. Em 2023, isso significou algo próximo de R$ 393 bilhões, com mais de 1,26 milhão de empregos formais diretamente vinculados a ela. Se ampliarmos o olhar para atividades indiretas ou correlatas, falamos de quase 8 milhões de pessoas ocupadas nesse universo. Só no terceiro trimestre de 2024, surgiram 228 mil novas vagas, um crescimento de 3% — ritmo superior ao da maioria dos setores tradicionais. A arte gera trabalho. E, mais que isso, trabalho qualificado: o salário médio nesse setor gira em torno de R$ 4.800, cerca de 50% acima da média brasileira.
Em Cuiabá, a confirmação do show não é apenas uma conquista cultural; é um investimento econômico de alta rentabilidade social. Cada real investido em cultura, segundo estudo da Fundação Getúlio Vargas, retorna mais de R$ 6,52 para a economia. Esse rendimento não se limita às grandes empresas patrocinadoras. Ele se espraia pelas calçadas: no vendedor que monta seu carrinho de cachorro-quente, na costureira que produz camisetas temáticas, no motorista de aplicativo que dobra sua renda naquela semana. A cultura, aqui, não é ornamento. É infraestrutura vital.
Em tempos em que o valor de uso da arte muitas vezes se vê submetido à sua transformação em mercadoria — fetichizada e capturada por plataformas —, testemunhar um espetáculo que mobiliza trabalhadores, territórios e públicos diversos é, também, um ato de reconexão com a cultura enquanto força de produção social. Em vez de operar sob a lógica excludente da concentração nos grandes centros, eventos como esse apontam para a possibilidade de uma redistribuição simbólica e material do valor produzido. E, mais que isso, reafirmam o trabalho cultural como prática concreta e produtiva, muitas vezes invisibilizada nos cálculos convencionais do capital.
Com o show, virão caravanas, mochileiros, curiosos, fãs antigos, jornalistas e influenciadores. Virão para ver o Guns, mas ficarão para conhecer Cuiabá. Vão dormir em hotéis, comer em restaurantes, circular por bares, fazer compras, descobrir a cidade. Não será apenas o estádio que lotará: a cidade inteira entrará em cena, num movimento que reforça sua imagem como destino cultural. E isso também é política pública. É política urbana. É política de desenvolvimento.
Projeta-se, até 2030, que a economia criativa brasileira crie mais de um milhão de novos empregos, alcançando um total de 8,4 milhões de trabalhadores. Um em cada quatro postos de trabalho criados nos próximos anos estará, direta ou indiretamente, vinculado à cultura, à criatividade, à inovação. Já são quase 7,8 milhões de pessoas empregadas nesse setor — um setor que cresce silenciosamente, mas com potência, com uma taxa anual que supera os 3%, muito acima da média nacional. São trabalhadores e trabalhadoras que recebem, em média, salários 50% maiores do que o restante da população economicamente ativa. E cada real investido em cultura, segundo estudos recentes, pode retornar mais de seis à economia local, fazendo com que a arte e a expressão se tornem, também, engrenagens de desenvolvimento, redistribuição e prosperidade.
Agora, imagine Axl Rose duetando com Pescuma e Slash solando a Guitarra de Cocho, criação do músico Bily Espíndola? Seria o valor de uso da cultura popular se infiltrando na lógica global do espetáculo — uma fagulha de rebelião estética no coração da mercadoria. Porque cultura de verdade não é só consumo: é território, é trabalho vivo, é povo se escutando. E que Cuiabá siga assim — afinando sua voz, ocupando com dignidade esse palco que, por direito histórico e político, também é seu.
Fabricio Carvalho é Maestro e membro da Academia Mato-grossense de Letras @maestrofabriciocarvalho